Gosto do tom argiloso do Outono.
O calor súbito que antecede o cheiro da terra. E a chama de ferro, ou luz, que se lhe segue. A despedida do macerar do Verão na parra que lhe sobrevive. A desistência parda... Qual parda?! Rubra! Roxa! (Roxo, o meu xaile que quase esquecia.) O aroma infinitamente doce. E a chuva farta. O vento morno. Os frutos sábios. Robustos. Que gritam. Precavidos. A lã crua nas mãos da vida. Macia. Já sem pressa. (Obliqua na pressa). Também ela macerada. Meadas quase verdes. Novelos quase castanhos. O lume que apetece. Amo o tom amargurado do outono. Infinitamente.

Na horizontal, como se ama a terra.






[Retoma de texto dos alvores do século, em dia tomado no trato da marmelada. Tarde bonançosa a prometer uma invernia remansada.]



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«Tu quedas-te eiqui, quetica, i nun refunfunhegas!»






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Toldados pela música e pelo vinho, são pássaros os meus olhos sobre a tarde inteira. Na página do nada, ilumina-se, nívea, uma magnólia de alabastro. Gostaria de a cantar como Eugénio canta o ramo de cerejeira. Daí aos verdes anos vai a distância de um aroma, um tomateiro que nasceu ali, naquele vaso, por engano. Um outrora de tranças louras e pequenas, azuis, despedidas-de-verão. De gargalhadas francas em chinelinhas de meter o dedo. De sorrisos frescos a segurar cubos gelados de laranjada. E tanto dá falar de algas, de medas, de amoras ou de malabarismos num ramo de figueira. Ao entardecer, impreterivelmente, o cerimonial do perfume: as gotinhas de água-de-colónia meticulosamente coreografadas entre os pulsos e a nuca, para um breve passeio até às vitórias. Sorrio-te Ave do Atlântico! Eu sei que caminhávamos até ao farol. Sorrio-te Ave da Serra! Eu sei que olhávamos o pôr-do-sol no lírico cruzeiro sobre a fraga. Mas sabes, há uma cidade nova na outra margem, um estatuto que me vem ferindo as asas.






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resquícios d’Estio a desabotoar melancolias







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A poesia é
um caleidoscópio de
pérolas e flores de vidro
que espelham
um coração aflito.



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motivo de vime e uvas no coração da tarde

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notas de chuva na vidraça
e sons de rua, de passos e recados














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um recurvo crescente a imperar no poente










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O Outubro transmontano chega todo engalanado.

Traz capa de burel castanho com franjas d’ouro magoado.



Terçado ao pescoço um lenço, com laivos da cor do mel,

Dizente com o rubor intenso das vides de moscatel.



No rosto ensimesmado traz a dureza da noz;

Ora doce, ora irritado, o timbre que põe na voz.



Seu viso brilha e rebrilha, tal qual folha d'oliveira,

A mão, se a sorte vindima, luz que é d'ouro na algibeira.




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O porquê dos dicionários em dia de três sufrágios.

Meu pai, no decorrer das suas leituras e numa atitude quase de metodologia certificativa, tem por hábito anotar, em grafia de carvão aguçado e em toque de posfácio, as palavras cuja acepção precisa ignora ou de cujo étimo conceptual irrompe uma estranheza dúbia.

Fá-lo na derradeira página da obra, habitualmente limpa, que ali surge branca e disponível, como mente de ascético em abstinência de dias, e que outra função não terá, senão a de reservar ao leitor zeloso, esse espaço para buril da íntegra literacia. Com o tempo, por curiosidade, simpatia e crédito , habituei-me a seguir-lhe o método. Eis porque na última lauda do Diário do Torga, lhe anotei o significado:

lauda
     s. f.
     Página de livro, escrita ou em branco.




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um chamamento de outrora regressa amorosamente
vem pincelado na memória
como toque esbatido da chama que chama
do fogo que é fonte
da água que basta







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                                                                                                   Foto de Pai Antão
GRATA
...
(te digo)
olhava aquelas mãos
sábias
a manobrar a enxada
com a mesma primitiva alegria
com que sinto o primeiro perfume do Verão
assim me lembro do ritual da rega
nas cinzas do dia
uma oração congénita de sabedoria ancestral
dorida e crente
o perfume da terra calada
cansada de se dar ao sol
a sorver a ilusão da chuva
o vestido de algodão níveo
sobre o corpo tenro
e o sorriso trigueiro a comungar
com os pés maculados
a matéria primordial
a tardinha quente a soltar um anjo doce
morno | interior | livre
e a vida a surgir da quimera
de mãos calejadas

nem o silêncio
se compara à música de uma enxada
a rasgar auxílio à terra pedinte
o hino da labuta
- intimo -
 a terra grata
- tocada -

(arrepio-me
!
não quero nem falar dos frutos)
descalça e bravia
sempre o soube
assim será a liberdade:
terá o gosto da conquista e a humildade de um São Francisco






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extrair a seiva do caos das coisas
insignificantes
a magnólia que explode no tic-tac da tarde
lenta
 e a certeza
que remanescerá primacial
para abrir de regressos os equinócios








ouve...


a canção dos passos sobre o rumo dos versos


nos instantes efémeros dos ocasos...

 




Escutar ao longe

uma voz sossegada...

doce e maternal,

como a voz do lume,

que cedo se acende,

no frio que assume,

no dobrar das horas,

a Noite chegada.





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Ervas daninhas, como silvas e urtigas, lembram-me sempre pernas nuas, vestidas de razões juvenis e estivais, calcorreando aventuras pioneiras, por carreiros e lameiros... provavelmente debaixo de ardências obstinadas, galopando selas de duas rodas, indiferentes aos espinhos. Chupado o sangue e mordida a terra, numa palestra da vontade, subordinada aos frutos vermelhos. E claro, muito cheiro a creme nívea no fim do dia...!



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desferir o olhar contemplativo
com o propósito do saber justo.
da consciência das horas íntegras
tomar por nome a paz.
e confiar...
que de pão e uvas cessa o dia,
contente de si,
quando o timbre da emoção
legado à quebra da tarde,
na noite suspira.




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     que triste canto
           na tarde
decanta a chuva tardia
         gota a gota
       ( sem alarde )
vertendo da gárgula fria





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ser da tarde a pausa
pauta de reflexos lentos

ser de sempre
nos sons varridos pela memória


ser primieva
- de estirpe silvícola
e floral -
no alegre regaço
do primeiro perfume do Verão





PIÉTA

eu fui semente exequível ar sadio água pura
eu sou o rosto da dor no regaço aflito
asfixiado por fundibulário injusto
a flor o fruto
o colo exangue
as lágrimas lâminas de neve
todavia resguardo e colostro perene







CLEPSIDRA

como um rio nos dedos de Ariadne
ou a chuva nos gestos decantada
assim a Hidra chorando
pelo crivo das horas
passada









Guardo no sudário da memória
o rosto de outrora magro da história:
da seiva vertida pela chaga de fogo
na fraga rasgada pelo sangue do povo.

O cume de ferro furtado ao céu,

que a vista tão cedo, tão cedo, esqueceu.